AGOSTO 2010

cafésolo

domingo, 29 de maio de 2011

trazes um rumor






















Trazes um rumor escondido entre os lábios. 
As palavras ocultas, arrumadas pelo medo  
inerte do espaço. Objectos desorientados 
pela mesma desrazão dos dias, os olhos 
fechados nas sombras dos objectos. Trazes:
um cheiro de amor, um aroma doce de rosas
silvestres e um vestido (que vejo claramente),
como uma espécie de poluição entre a cor e o
aroma campestre de um corpo suado por dentro.
Espalhava-se como um rumor de amor esse teu
vestido, desde o alto dos muros até ao alto dos
sorrisos abertos como flores emprestadas de boca
em boca. Uma espécie de rumor espalhado pela
força dos dedos, a marca profunda dos anéis.

                E agora que regressas, trazes murmúrios:

um rumor frio que esmagas entre os dentes e as águas
profundas do teu pensamento. Um eco calado na boca
como a alta saliva seca pela surdez muda das palavras­.
Uma porta aberta para um abismo que trazes por dentro.
Um alto mar revolto por nada, ou um todo sal que ficará

                                                      [sempre  por dizer.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

«second hand smoking»















Esfumo-me por cada momento 
ausente, por cada ansiedade
acesa num rasto raso à beata.

Por cada palavra deslavrada 
sobre a cinza morte lenta – 
meros escombros do destino.

Digo:

é urgente ordenar as palavras,
as metáforas e todos os nomes.
É urgente saber o porquê deste

caminho tão vago desfeito no pó.
É premente este silêncio que nos
estrangula lento e insuportável.

Por cada momento violento há uma 
voz que implode junto à secura
da garganta, junto ao fim do mundo 

                                                 [no rosto: 
um mesmíssimo mundo:                       

              que nos arde e se esfuma 

entre a brandura das mãos.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

placebo















Pergunto-me: será que existe
receita ou remédio para um
pretérito mais que (in)perfeito?

Em modo de adversidade ou infortúnio
(intolerável) deverás administrar
redobradas doses de relativismo.

Porque as memórias são
– autênticas caixas negras
repletas de fotografias –

lâminas que cortam uma vida
por dentro – efeitos secundários
possíveis – no limite da ficção.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

#cenário 1


















O cenário é um café onde se permite fumar.
Há um último cigarro que fumega apressado
num cinzeiro meio cheio ao centro da mesa.
De fronte para o grande vidro da entrada vai
levantando um semblante distante, como que
a contar o resto das cabeças que resistem à hora
marcada. Escreve compenetrado a espaços num
bloco negro, que acomoda de quando em vez
de mão solta, é canhoto, é certo, e os seus
óculos disfarçam a barba que traz por desfazer.

Dão-lhe um ar de qualquer coisa, como direi:
séria, os óculos que usa. "Deve ler que se farta"
comentam as tipas da mesa ao lado, um pouco
antes de zarpar. Avançam por rasgados sorrisos
rápidos que as levam (por gargalhadas, mesmo!)
de encontro a um destino seu, sob o olhar atento
daquele que agora parece ser um poema que fuma
(outra vez). Parece ter uma certa compassividade
eléctrico-compulsiva, se calhar também perde algum
tempo com os versos, ou talvez não, não sei bem.

Há algo de estranho nesta personagem que me faz
ficar alguns minutos mais (ou aqueles que sobram
ao meu próprio fado). Lá fora observo outra gente
que se movimenta numa quebra de ponta na cidade.
É a minha deixa e com ela me levanto também, mas
creio que ainda ficaram umas 10 ou 12 cabeças (se é
que os moços do balcão também contam, no improviso
da contagem). - É estranho ou mesmo raro ver-se gente
«perdida», penso, ou então, eu é que perco demasiado
tempo a observar cenários daquilo que deambula por aí.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

perdi os versos

















Ontem perdi o sono e depois
os versos do poema. O vento
difundia-se em súbitos gritos
entre braços, desideratos
fossem de outra gente – como
o amor isolado entre paredes –
na cidade que adormece.

Perdi os versos e o sono
por esta terra reinventada
na espessura do papel.
Entre uma luz evidente
e esta paleta de cores repetida,
tal cópias exactas de um
passado onde não moras.

Perdi os versos que jurava
não perder, mas perdi,
perco-os sempre defronte
ao desejo de um nada que
acontece. Como uma tocha
que arde figuradamente triste,
nesta vida de se «trazer por dentro».

Perdi o medo de perder, desde
que cedo perdi os versos,
as estrofes e as cores,
ainda que por mil manhãs
me reencontres perdido neste
mesmo papel de retrato (trans-
figurado) em palavras que ficam

                            [e se repetem – para sempre.

sábado, 14 de maio de 2011

sem hesitar – a palavra
















Desliza às paredes da língua
uma torrente de chuva ácida
na vez da saliva. Como se fosse
uma corrente que nos atravessa

o espírito – afundando depois
entre poros – melhor dizendo:
entre a armadura de aço no peito
e os limites da pele que cede

à estiagem lenta dos dias.
Envelhecemos aos poucos,
adicionamos brancura aos
cabelos que se descuram

na avidez sôfrega deste tempo.
E insistimos por esta contagem
que se julga ser interminável.
Valha-nos a memória do tanto

em que fomos, a verdade em que
sempre vivemos, porque a língua
que nos representa há-de morrer
firme – sem hesitar – a palavra.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

hoje chamei o teu nome














Hoje chamei o teu nome,
o teu dia cansado,
a tua ausência,
longo é o verbo da espera.

O dia também me fugiu,
foi um corrupio de ida em volta
ainda que breves tenham sido 
as minhas conjugações.

Chegou ao fim o dia,
encontro-me finalmente 
de frente para este rosto
que também trago cansado.

São estes dias de suor
e esquecimento
que nos fazem esquecer
dos nomes, dos verbos,

de toda uma semântica
que nos aproxima – para além
de todo o esquecimento
que nos representa – assim.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

«metaphysica»
















Este poema não tem pés, tronco ou
sequer cabeça. Será porventura um grito
perdido por dentro, uma inesperada
teoria metafisica (sei lá bem de quê).

Uma garrafa a meio termo – tantas vezes
fiel amiga –  «emprestada» ao poema.
Um armário embutido ao ritmo da vida  
arrumada em registos inscritos por nós. 

Por vezes, apetece-nos gritar à varanda
onde nada acontece, ou sequer tenha
um sentido que o valha. Vemos longe,
inflectimos os gestos, perdemos a voz. 

Perdemos o jeito e a coragem de o fazer.
E depois? Quantos são aqueles que se
dão conta de uma certa & fugaz loucura?
Tudo é instantâneo? Talvez meu caro! 

Mas quantos de nós gritamos por dentro
a degustação que nos mastiga por fora?
“Talvez seja a morte” (diz o poeta que 
mais aprecio em matérias de destino).

E eis que chega a vez desta voz inquieta
ao silêncio do poema; por onde seguimos,
sob uma mesma teoria metafísica – que
nos centra em inexistir, viver – ou mesmo:

                                 à inconstância de ser.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

«night route»

















Há muito que as cores da cidade
se tinham apagado pela noite
que nos acolhia entre braços.
O cheiro da terra molhada envol-
via-nos – porquanto esperamos –
num segundo acto combinado.

Havia forasteiros (por certo)
que deambulavam pelas ruas
oriundos de norte e sul, e nós,
permanecíamos ali, estáticos,
encostados e quase tão inertes
quanto as pedras do muro;

Desabaram duas, três, quatro
horas, entre conversas que foram
caindo como a morrinha penetrava
a brandura de um resguardo de Abril.
A chuva caía à semelhança da noite,
cansada entre copos vazios ou incertos

                                            [como nós,

será que envelhecemos?