AGOSTO 2010

cafésolo

sábado, 31 de outubro de 2009

LÍVIDA NOITE


---------------------------- Para a Cátia

Caía a noite em tom lívido
quando a notícia chegou
ao liceu Alexandre Herculano.
Desceu automaticamente uma

espécie de angústia nebulosa,
enquanto se iniciava alheia
a última aula da última turma do dia.
O sangue corre-me veloz por entre

impulsos eléctricos que reagem
sob a forma de flashes memoriais
à tua existência. As vozes são cada vez
mais espaçadas, dispersam-se agora

dentro dos largos corredores, em
combinação com centenas de imagens
fotográficas que ressudam em mim.
Era impossível ficar-te indiferente,

irradiavas coriscos por toda a tua
existência e, nas centelhas que a tua
boca soltava, ressoavam certezas de quem
era o que realmente queria ser.

A morte,

colheu a destempo
como quem ceifa
trigo verde,
numa vontade imperfeita,

incontornável
ao sabor duma qualquer

maquinaria humana.

Para sempre ficará guardado o brilho
contagiante do teu olhar que sorria,
o ar suave e doce da tua essência,
numa memória colectiva perpetuada

em nós, em cada imagem, em cada gesto teu.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Outros poetas



Há monstros nas sombras daquilo
que toco, sem notar existir
vagueiam prateleiras forradas
a livros, uniões de facto,


íntimas de mim. Há silêncios
na casa que implodem e suplicam
sobrevivências num rasto vermelho
fogo - emergido à contra-luz duma

taciturna madrugada. Devo-lhes
esse silêncio, o sangue frio em reunião
com as palavras que respiram e se aclaram
noutros monstros

__________________[de vozes inquietas
 
que me sussurram e despertam
para outras vidas, outras paragens.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

OUTRAS LEITURAS



caminho derramado de asfalto
negro, gravilha gritante salta
da parede, casa em ruína
evidente no húmus da cidade,
a árvore tomba & escorre
na hera sua saliva verde,
o escuro pouco importa
e não imprime medos
na praça de liberdades
que cheiram a jornal
e electrodomésticos ultra-
-passados, sós,
sem dono.
essa pirataria
moderna & precária de
miolos vãos (a que chamam
de vulgo «junkies»),
desusam usá-los também,
fingem suas leituras improvisadas
no «central business district»
também ele improvisado e,
a eles pouco importa saber,
se a vida lhes escapa com vida
ou antes definha como a própria
praça, prostrada nas infortunas
e contos de outros tempos,
outras ---------- leituras.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

VAZIO AO DOMINGO



Uma manta de viagem
entre almofadas
desalinhadas no sofá:
eis o meu domingo.

A hora é de inverno,
mas tudo
se mantém imóvel,
à excepção do café

que me ofereço de saída
quase ao fim da tarde,
um livro que compro
para ler noite dentro e,

o caminho que repito recto
a esse lugar a que chamamos
de casa. Da janela, vejo sombras
em apartamentos vizinhos, minúcias

com que se vive o dia e se prepara
o outro que não demora. Infausto
é reconhecer que cada segunda
[de ventre vazio

se alimenta dos nossos gestos,
nos espera e morde as pernas
como o cão raivoso desconhece
o poema e a seu dono.

sábado, 24 de outubro de 2009

Paragem



Tens falhado sorte maldita,
a tantos ou a alguns
que te esperam, numa qualquer
vulgar paragem de autocarro.
Diluem-se em ventos e águas
vestidas de angústias.

Aquele rosto só
na espera da noite,
ficou-me gravado
porque travava o fumo
de um cigarro
numa passa longa e assustada,

enquanto eu percorria
tranquilo a minha ida.
O cd no carro brande-me o ego
mal acordado, ergue-se
o desejo autómato por mergulhar
na sede dos copos desmedidos,

entre fragmentos dispersos,
como aquele rosto só,
daquela paragem vazia.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Viagem


(Painting by: Hugo Pereira)

Percorreste amigo a «A1» de fio
a pavio e, dessas travessias entre
Porto/Braga/Sintra/Alentejo
relembras por certo tuas variações.

Desses instantes casa às costas,
(tantas vezes!) transportada na exiguidade
de uma viagem só.
Recordo-te desde a primeira gargalhada,

das sobremesas que comias em dose dupla
na cantina das Belas Artes, sem nunca
desmanchares o ar sereno que te compunha;
dir-se-ia: ingénuo até. Nunca cheguei a perceber

se era propositado ou mera distracção,
vejo sim, ainda hoje, que era um creme
de maçã com canela, essa segunda iguaria
que desviavas. A geografia que governa

os teus passos, aponta agora noutros horizontes,
ainda a descoberta do cinzel em outras bandas
que congraças agora em versos pintados

pela tua "Criação".

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

PRAÇA AGOSTINHO VALENTE



Os «Zen» brilhavam no leitor de cd’s
do «bibau-bar», a um ritmo nocturno
onde as garrafas de cerveja vazias
pareciam voar sobre mesas cheias.

As colunas vibravam num limite
que inundava dois patamares
de tons graves, agudos e baixos,
conforme o estilo de cada um:

cave ou janela?
Pormenores pouco importam,
apagam-se no cinzeiro do silêncio,
que ronda as 2 horas mais tardar 3.

Desprendem-se os cachos
em debanda, um rol de caras
próximas, mas tão diferentes
no destino. Sempre que a porta

aquela hora se fechava, muitas
foram as histórias que ali se estribaram
entre paredes. Parecem sobreviver ainda
hoje, num tempo que avança rápido & urbano
___________________________[tipo fast food.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Zen - U.N.L.O.



«The Privilege of Making
the Wrong Choice»

A mulher repousa doce
sobre um manto de folhas.
Algumas flores brancas
ladeiam-na. São da sua
pertença um derrame
da sua «pochette» perdida,
entre caruma e a humidade
verde do seu peito nu.

O sobretudo não guarnece
as suas longas coxas,
nem os vestígios industriais
que reinam à luz da gananciosa
mão humana, contígua ao mar
que mal respira. Vive num
sufoco de gases refinados
pelo capital opressivo,

que nos mata e tenta inibir o direito de respirar,
este odor puro, nesta terra molhada.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

PRUMO DE CHUVA




Os ossos prensados em torno
da noite anunciam a chuva
os charcos e a lama que resiste.
O cinza alvo no tecto das coisas,
confirma-me o estorvo sentido
dum sono lento, mal passado.
Os dias sustentam um rasto

distinto nesse fio-de-prumo
que desconheço vertical.
Imperturbável assim me sinto,
mergulhado na anatomia
imutável das estações que aceito,
como a essa faca que corta a eito
certas comiserações à deriva.

domingo, 18 de outubro de 2009

1989



Passaram duas décadas.
Ainda me recordo desse sinal,
que ilustrava a timidez dos teus lábios,
sempre que se atreviam nos meus.
Novembro, era o teu aniversário,
as salas sucediam-se num reboliço,
como a imensidão de convidados
que rebentavam
pelas diferentes divisões da casa.

Pouco me sobra dos momentos
laterais a nós. Sentados no chão,
lado a lado, sentimos o apego
das mãos, no segredo
de um escuro propositado.
Memorizei esses momentos
que passamos, naquela sala
debutante, ao ritmo vinil
dos «Pixies & Violent Femmes».

Poder rever-te, foi como
o reatar de um acto,
dessa peça perdida
nos confins de um tempo
que buliu. Observo-te
diante do ecrã, numa teia
composta pelas frases soltas,
desta rede que nos une
& nos trás de volta.

sábado, 17 de outubro de 2009

NÃO SEI O TEU NOME



Esvoaçam avulsos diálogos
num pátio convulso,
pela nicotina inflamada
de conversas descarregadas
até aos monólogos.
Sinto-me ultrapassado
primeiro à passagem dos olhos
que permeiam os meus e,
muito depois,

pelas histórias não previstas
[no meu código de estrada.
Entendo a minha dispersão
que se foca na porta do bar
por onde irrompes]
em simultâneo um cenário
de velhas árvores quietas ao fundo,
são a fuga de improviso,
o meu verdadeiro trecho desprovido.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

SEM PONTUAÇÃO



Nasci assim
como o poema ao acaso
nas contas dum tempo
puro em revolta
havia nesse hiato perdido
outros textos nascidos

doutros berços
em cores alegremente pálidas
mas eu era apenas
o mirrar do texto
quem sabe mal notado
de pernas compridas

finas e secas
ao sabor do sal e das lágrimas
pela descura do tempo
fumo de ervas aromáticas

um fim de linha
entre as linhas
escritas e gastas
sem pontuação

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

DESFOQUE



Os ponteiros avançam
na madrugada, dominando-a
como a uma extensa avenida.
Apenas os minutos gelam,
tal como os dedos frios sem sangue.

Não existe trânsito ou semáforo
que estanque a tua pressa
furiosa. As pálpebras tremem
delicadas, a cada solavanco irreflectido
em cada mudança veloz.

E tu, julgas ter uma razão a mais
para fugir aos desígnios da tua presença
ao estilhaço da tua ribalta.
No silêncio dos teus passos, embates
de frente com a tua intrepidez,

só o desfoque do tempo, poderá ditar-te
a palavra fim.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

PERCURSO



Percurso
reproduzido
chego perto do refúgio
do meu resguardo
e sinto,
essa bolha gigante
que me envolve
e conduz
naquilo
que esboço;

o carro flutua
por certo,
não sei.
É estranho, mas sinto
«simultaneus» vazio
um cansaço sem suor
o devaste no corpo,
duma mente que marcha
e não pára,
jamais;

depois acordo
vivo
imediato dia diferente e,
a sensação torna
outra vez.
Intrincadas são
as palavras colhidas
que nos fulminam
mais além.
Diz-me, porquê?

terça-feira, 13 de outubro de 2009

CEGUEIRA DISFARÇADA



Seguiam cegos pelo caminho,
num destino incendiado pelo calor
das passadas irrequietas.

A monte, estava o amplo impulso,
saltava livre ou, aprisionado, seria?
Vivia aliás, ciente de estar amarrado

pela raiz brava, dum punhado de amor,
que ambos julgavam lhes pertencer.
Impuro e rude, assim era o ócio, com que

juntos brindavam e bebiam a jusante,
num refluxo que os prensava adiante.
Inauguraram frequentes garrafas

antigas & vertidas, de colecção;
na ressaca do entusiasmo, exibiam
as réstias da vidraça, junto ao velho

alpendre abandonado na casa.
Aquela cegueira disfarçada, sobrevivia,
em cada mão dada, vazia de sentido,

a cada erva espontânea, nascida no quintal.

domingo, 11 de outubro de 2009

MIL FONTES



Respirava-mos fundo naqueles dias, pouco menos
que a perfeição, numas férias improvisadas
mas, entusiastas. Lembras-te? Decidimos a ida
com a enorme vontade de querer-mos estar sós,
de inscrever aqueloutros momentos inolvidáveis

no nosso ainda tenro texto. Depois, o telemóvel tocou,
naquela ânsia que me vestiu o rosto, atravessamos
o país em propósitos absolutamente meus,
como poderia eu esquecer-te?
Foste a peça essencial daquela urge engrenagem,

como pude desvalorizar-te assim?
Mais além, estava na iminência de entender
que a nossa confluência teria os dias contados,
a ufania venceu. Prescreveu-nos porém, súbitos
remédios, que tomámos sem hesitar.

Apanhaste-me de improviso, chegaste veloz
como um trovão fulminante, que se espessou,
sobrecarregando uma pilha de palavras perdidas,
entre a espuma e a demanda das ondas serenas,
daquela costa Alentejana, algures em 2001.

sábado, 10 de outubro de 2009

«FALLING THE STAR»


Partiste depois daquela quente e singular noitada de copos,
encarceraste-te entre as quatro paredes do teu quarto
em Coimbra, onde milhares de fotocópias e dezenas
de sebentas, se riam de ti, até altas horas da madrugada.
Perguntava-me repetidamente, o que seria feito de ti,
onde e com quem estarias. E eu, curiosamente, sempre
te imaginava numa mesma cena, debruçada sobre o teu
busto, à luz de um candeeiro que iluminaria as tuas leituras.
[Mais tarde pudemos esbater entre risadas, essa imagem
deturpada que não passou disso mesmo, um erro de casting,
apenas possível pela própria envolvência, daqueles tempos.]

Volvíamos em cada fim de jornada, para as vulgares

férias académicas. Constatava-mos depois, que Macedo
se mantinha imóvel, talvez avesso a mudanças bruscas.
Somente os bares, tascas e outros cafés sobreviviam intactos,
porque nós crescíamos e anotava-mos toda e qualquer mutação
alcançada na singularidade de cada traço de cada gesto.
Guardei no entanto, desusadas dúvidas desse tempo:
- Onde guardas afinal, aquela colecção de desejos que reivindicavas,
pestanas coladas aos céus, em noites abafadas de verão?
Sabes o que guardo desse tempo? Alguns cheiros e outros pedaços
de pequenos nadas; que a mais ninguém dizem tanto,

--------------------------------------------------quanto a mim.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

MADRUGADA NO TEU PUZZLE



"Puzzle"
Jogo de paciência composto por uma infinidade

de fragmentos recortados que se devem combinar
para formar uma imagem.

Esperaria, horas a fio por ti,
mesmo que não fosse essa
a história que os teus olhos
vissem contada pelos meus.
Naquelas madrugadas, haveria
lugar às conversas famintas
de basto alimento - o lugar aos abraços e,
sorrisos desconexos entre si.
Surgiriam jogos desenhados
numa infinidade de projectos
que desmontaríamos juntos.
Dividiria pelas sarjetas as agruras
que me estorvam, num inverno
que está para vir, espantaria os males
e os remédios que nunca hei-de
ter, construiria o mais acertado
poema,
só para poder tocar
no teu recôndito existir.

E tu? Quanto tempo estás disposta esperar?

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

LUSCO-FUSCO



Disseste:
«Vi o crepúsculo no teu olhar…»
Quererias dizer:
A decadência, o declínio, o ocaso ou o amanhecer?

Eu vejo tantas coisas que não condizem,
tantas claridades frouxas que precedem
indubitáveis e surpreendentes clarões
(tantas vezes vindos de um absoluto nada).
Tantos bafos são (ou parecem ser) uma espécie
de expiração artificial, cancerosa até,
como a acidez das palavras expelidas,
no sufoco de um vómito, que se esfacela silencioso.
E era tamanha a dissensão exposta desse teu espelho
lascado, irreflexivo, que acabei por me esconder,
atrás de uma qualquer argumentação escanzelada,
que nunca cheguei a aduzir. Morreu, tal como a tua.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

CORPO A NU



Externo eriço esse peito,
sem rede ou trapézio,
solto ou seguro de si?
Adivinha-se o toque,
dessa mão que amarra
sem soltar a costura
deslassada do quadril.
Seiva doce, brota quente,
teu vulcão em lava escorre,
por ti ou per si?
Sente o sulco sem arado,
pura fome insaciada,
mero desejo carnal,
desse corpo sem sangue.
Pretéritos momentos
apagam-se sem ardor,
definham & morrem
sob as mãos deste tempo,

irregular?

domingo, 4 de outubro de 2009

ÂNCORA D'OURO



Estacionamos o carro naquele jardim sem gente,
seguimos sem enganos pelo velho trilho do eléctrico,
de encontro à turba diversa e ressoante.

A chuva avançava tímida, sem crença.
Daquele muro granítico que improvisamos
como assento, facilmente resvalaram inúmeros

assuntos de circunstância, risadas e olhares
permutados no desengodo de uma noite
que crescia, rasgada como nós. Na madrugada,

descobrimos depois outros bares, galerias
de diferentes intenções, talvez mediadas
em preconceitos que se exibiam pelo descrédito nu,

das horas que avançavam e nos encaminhavam
de regresso a casa. Do último fotograma relembro:
a pressa e a sorte com que resgatámos a noite

__________________________o início de uma revolta.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

UM HOMEM SÓ



Um homem de meia idade treme,
tem na mão, o papel, o argumento
ou a escapatória daquilo que o trás por ali.

Esconde as palavras que parecem
dissimular-se por detrás dum bigode
nervoso. O olhar foge-lhe para a mão

onde transporta a sua arma de caligrafia
urgente, vem assinada por alguém
que lhe reconhece certamente os passos

e as angústias, obstáculos de toda uma vida
que deixou de lhe despertar o interesse.
«Eu quero cumprir!»

Repete ele a custo, numa espécie de discurso
com que engana a sua própria existência.
O destinatário do recado finge acreditar

na sua encenação.
O homem bate em rápida retirada
prometendo regressar com brevidade,

mas só ele sabe, o quanto quer fugir dali,
o quanto é amarga a figura que representa
neste cilíndrico mundo cruel, que o esmaga,

sem contemplações.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

OUTUBRO



Outubro comprido, longo, extenso,
como os teus cabelos castanhos
subtilmente tingidos no ouro,
que reflecte esse sol arrefecido,
inclinado, afasta-se de nós não opresso.

Tantos dias teríamos de contar, para afinal
concluir a tua dança assim, sem clamor
ou labareda que interpele as tuas águas
inóspitas, correntes que te seguem
por entre valetas e agueiros tão frequentes

como as noites em que escrevo.
Da tua essência Outubro, guardo em memórias
galochas que estreava a caminho da escola,
as castanhas e a sua aparição súbita, tal como
o fumo nas chaminés cinzentas, que compunham

todo um diverso e propício quadro,
longínquo, extenso,
como os teus cabelos castanhos.