AGOSTO 2010

cafésolo

sábado, 29 de maio de 2010

inacção



Há meia dúzia de situações
que te vêm «remordendo»
a existência.
São elas:
- as medidas mal tiradas,
os imprevistos impronunciáveis;
como um roxo fixo fato,
veste o vincado bailado

da passagem fugaz
___________[pelo «canal 2».
O mundo parece obstruir-te
barrado em materialidades;
ensaias o desejo, um retorno
aos remotos verões idos,
onde inscreveste passagens
tão felizes quanto a dos «tolos».

Às vezes, é com os «estranhos» da tasca
que te permites encontrar;
a tua melhor saída
o escopo ou o alvo perfeito
do atalho que se abre
«inalado» junto à soma das partes;
a mesmíssima inacção que evitas
a todo o custo, ou pretendes
_________[imaterializar.

sábado, 22 de maio de 2010

soluto (in)solvente



Dissolvo-me desde a base
até às nuvens soltas,
desde agora até sempre.
Dissolvo-me a cada segundo que passa,
sem que o soluto me transforme
na mais convicta solução.

Dissolvo-me mais e outra vez,
numa só gota de suor
lambido entre murmúrios verdes
ventre de intentos geminados
néctar puro
nunca antes bebido.

Dissolvo-me em mim
por ti
porque és tão solúvel
tão porfie
quanto eu
meu sal.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

praça [da liberdade]



Havia na casa uma escadaria antiga
e um corrimão feito em madeira
importada da África dos «anos vinte».
Havia alguns cartazes decorativos
(quase revolucionários) e quadros
que pareciam inacabados
ou feios por gestos pouco medidos
apressados
mas solidamente suspensos
nas fortes correntes metálicas
amarradas às paredes
que eram dum estranho exacto
azul cor céu.

A luz perpetrava a velha clarabóia
numa espécie de intimação
dum atento desfoque à vista.
Jogava nas suas reentrâncias e ângulos
de uma forma perspicaz,
conhecedora enfim,
dos seus segredos.
A cada passo dado entoava-se um som agudo,
imediatamente serenado pela velha escadaria.
Era como uma espécie de melodia
que nos recordava outras músicas
de outras andanças.

A porta abriu-se ofegante
e nós entramos de rompante
na velha casa.
Pudemos depois em jeito
de fim de cena, assistir
ao reboliço pintado pelo
cinza tosco que agora passa
nesta praça [da Liberdade].

segunda-feira, 17 de maio de 2010

O FIM DA MENTIRA



Na cidade ecoa um grito
preso no nada,
um turbilhão que ressoa
para lá da madrugada doce
junto ao pó dos armários
mortificados em silêncios.

As centelhas de luz laranja
reinam em intermitências
junto das janelas.
Despertam outros ruídos estrépitos,
projectados em sombras
d’outras injúrias cuspidas
por caras lavadas e punhos escondidos
mas engomados.

Nas sombras do nada,
conjecturam-se outros dias quentes,
apregoam-se outros sóis
talvez menos desavindos,
sem que a vingança
que nos roí os pecados
sob um sangue seco, espesso
e ordinariamente velho
nos moa a crosta
que se encrosta ferida.

Regressas a ti e no nada
constróis outras feridas
do tanto que por ti dás
e te observas engolido
nesse hiato que passa
imediato sem tempo;
o gemido que soltas
atado num olhar perdido
ao fundo da estrada,
no apurar
da tua mentira.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

NÃO HÁ TEMPO



Planeias o tango
e a ele te diriges
como se o reconhecesses ser
o teu lado positivo
os teus movimentos
os teus sons.
Agilizas-te com o tempo,
acertas as últimas minúcias
que te são características.
Tudo se assenta afinal
no seu devido lugar.
Soltas o ar que te resta e diriges-te
para o imediato momento
que parece ser o teu passo seguinte,
numa noite plena de luz, sons e sombras.
Tudo se encaixa até ao hastear das bandeiras
ao palpitar da retirada,
quando te dás conta de um nó
numa garganta difícil de engolir.
Vives numa espécie de analogia conexa
[nesse teu regresso a casa]
com o inexorável engendro introspectivo.
Tudo esteve no seu devido lugar afinal,
mas, porque será que despertas em ti
uma espécie de dúvida?
Terá ficado alguma coisa por dizer?
Nada que o próprio tempo,
não te possa servir
com a devida frieza
com que o caracterizas.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

GRIJÓ EM ABRAÇOS



Havia sempre uma maneira de ir,
cruzava a igreja no meio da povoação
e deslocava-me invariavelmente
ladeira acima.
Nunca sem antes tomar por “assalto”
surpresa a “velha” tia “Micas”,
para a avistar olhos com olhos,
sempre redondos e mel.
Tinha uma cara redonda e sempre feliz.
Depois, arrepiava caminho em direcção
à casa dos «padrinhos», adivinhava
entre passadas apressadas
os sorrisos e abraços
que sempre se davam.
A madrinha abraçava-me
envolvendo-me em seus longos
e ternos braços
e como levitava
o meu pequeno mundo
envolvido pelos seus abraços.
Sentia por breves instantes,
ser a pessoa mais amada da órbita.
Ao abrir o portão,
invadía-me quase sempre
uma espécie de nervoso miudinho
que crescia, numa pura ânsia
e desejo por aqueles mimos
que eram só meus.
Sentir a alegria do padrinho ao me avistar
pela janela da cozinha
que dava para o pátio,
o som característico que ecoava
do tilintar das fitas «espanta moscas»
oriundo da porta da frente,
eram um cenário que sempre se repetia,
quase que invariavelmente.
Era uma espécie de ritual nosso
que agora guardo, em memória,
para todo o meu sempre.

domingo, 2 de maio de 2010

MARIA, MINHA MÃE



Certo dia acordei
conhecedor da tua «ida»,
esperei por ti
alguns anos como sabes,
foi à altura
tão difícil aceitar.

Os dias arrastaram-se
penosos aos meus olhos.
Chorei palavras em lamentos
semeei cores de outros ventos
sem que as lágrimas ressequidas
enferrujassem a lâmina ríspida
que me cortava
lenta
a cada imagem tua.

É duro cinzelar a pedra
sem ter a verdadeira noção
daquilo que vamos esculpindo
tantas vezes no alvo acaso.
Faltou-me tantas vezes o «pilar»,
faltaram-me tantas vezes essas forças,
as tuas forças Mulher!
Faltas-me tanto!

Depois de acordar, ambos saberíamos
que nem uma lágrima vertera.
Fiquei seco e frio, e Tu,
conheces bem os porquês.
Porque será que nunca fui capaz
de te dizer um simples:
- Adeus?