AGOSTO 2010

cafésolo

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

sorriso
















Trazes o sorriso de um copo
meio vazio, entre almofadas
e cortinas de ninguém.
Deixo que o reflexo da sílaba
morra junto ao rodapé descalço,
rente ao chão.

Há sílabas mortas, espalhadas pela semântica
da casa. Há palavras que chamam por ti
entre escombros. O cenário é desolador, minto,
é um misto entre a transformação da madeira
que envelhece para além do tempo
que subsiste entre nós.

Os quadros desalinham no abalo,
e as crianças dormem – por fim ­–
nas profundezas de um sonho.
A tua sombra confunde-se com a sombra
de uma rosa que levita imóvel
ao centro da mesa.

E eu sou meigo e doce áspero e fel,
sou a pétala que seca na rosa sombria
do poema. Sou o olhar que se despenha
contra o lume na fronte dos prédios
iluminados pelo fim da madrugada
.

Sou o copo [ou meio copo vazio]
que trazes num sorriso despejado,
sou a mão que te prende ao mundo
onde adormeces – por fim ­– .

sábado, 19 de fevereiro de 2011

apuro


















Um impulso corrompe
um martírio, ou o seu
oposto – como direi –
o apurar da noticia;

a verdadeira razão de um
suor empenho: um enfado.
Emocionalmente perdeste
a ligação com o mundo.

Rasgaste o «kit» de sobre-
vivência, ultrapassado
que está o prazo dessa
validade. E não há mais

nada para romper; nada
que te prenda à matéria
ou má sorte em que dormes.
E os outros, os outros todos

preferem, ou ainda melhor:
parecem escolher morrer
sós, escondidos desde o alto 
da escarpa. Disfarçados vão

entre medos e suores frios, 
entre o amor e os ódios todos
do mundo às traseiras da vida.
Perdem-se os dias, os anos,

o cabelo e os dentes, o caminho
que não se escolhe como ao nosso
próprio sangue. Bebem-se amargos
 – engolidos venenos – e foge-se,

foge-se de tudo e das sombras do
nosso corpo; por fim escapa-se
[quase ileso] a esta espécie de mau
agoiro – que se desata – sem querer.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

uma certa ideia de futuro
















Não tenho mais um passado.
São pedaços partidos de um
espelho tão perdido quanto
a luz – por vezes –  de uma

certa ideia fosca de futuro.
Ficará sempre por saber ou notar
a quem pertence a chave [afinal]
das primeiras tardes de sol

na esplanada. De quem é a pele
salteada entre os livros de um certo
veraneio que se acende depois.
Ficará em ti por contar uma certa

ausência desarrumada entre o ferro
e as cadeiras que rangem – longe
das mãos – na firmeza do cimento
deste chão. Ficará sempre por saber

quanto nos custa a espera dessas tardes
azuis, ou mesmo, uma certa ideia
esquiva de futuro que se escreve como:
ânsia, medo, angustia ou solidão.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

corpo-a-corpo-boca-a-boca

















Fazes-me ver longe quando estamos perto.
Primeiro concentro-me na tua boca
e depois no riso disperso dos teus olhos,
nas imensas centelhas também dispersas
aos três cantos da sala, porque o quarto
canto somos nós, olhando-nos:                           
boca-a-boca-corpo-a-corpo.

Camuflamos um ou outro sorriso no apelo
ou simples permuta da boca encerrada
às palavras, como uma espécie de pacto
de silêncio – por mil imagens roubadas.
E voltamos para repetir as metáforas
de um não futuro que se adivinha,
como este tempo que nos ronda devagar
e nos faz ver longe quando estamos perto.

Regressamos por uma espécie de distância
presente, por um mesmo caminho onde nos
inventamos intactos, digo, por um caminho
onde nos construímos sós, – como as quatro
paredes no silêncio da sala – & tu, és tudo
quanto meus olhos requestam ao lume
brando que nos devora:
                           corpo-a-corpo-boca-a-boca.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

registo químico














Éramos de um tempo em que as dúvidas 
ultrapassavam a espessura gélida de dez 
invernos. Achados assim, por quase nada, 
por um quase modo circunstancial de ser, 
éramos de uma espécie de registo químico
vetado a um aleatório acaso, dir-se-ia:

um acaso inevitavelmente igual.
E ficou tarde para travar esse impulso
que crescia – entre a vaga alastrada
no lume – de um vazio combustível no peito.
Ficou tarde ou urgente para nós o tempo, 
as palavras que nos alcançavam

como o resto dos dias cresciam 
à luz de um verão que irrompia 
a brandura branca das paredes 
da casa – votada a crescer no amor –  
por onde nos regressamos ou então 
nos tornamos para voltarmos a ser.