AGOSTO 2010

cafésolo

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

COBERTURA INCERTA



Passamos horas sentados no telhado,
assistimos sem vertigem ao despir
daquele momento, observamos depois as luzes
que irrompiam sob um soalho plástico da cidade.

Trocamos o silêncio pelo engano dos sentidos,
projectamos a queda e a ascensão das coisas
que haveriam de cravar-se por entre os poros
que respiravam a custo, sem acusar.

Pouco importariam certos rudimentos,
fossem arte ou meras eloquências estranhas,
pareciam esquivar-se por entre as telhas
como as pingas caídas de um súbito aguaceiro.

Chegaram os primeiros ventos,
trazendo aquelas pedras cinza
que se nos atravessaram na garganta,
essa matéria prima inelutável

que nos elucidou, desse axioma invencível;
[Ficaríamos sós, ante um soturno e vago inverno.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

INGRATO



Ingrato.
Talvez fosse um tipo ingrato,
num sentido puro, lato.
Podia ter sido talvez,
esse rebento viçoso, seco depois,
pelas tenras nervuras do teu corpo.
Seria quem sabe,
um grito que não se sente,
pelo furioso mascar da ilusão
que desvanece.

Podia ter vestido, sem saber,
a pele e a fome do animal
sem rumo ou altivez.
Sei que poderia ter sido
o auge dessa cor esbatida,
na parede por pintar.
Seria quem sabe,
um «por tudo e por nada»
desse inevitável ocaso,
nato, de uma semente estéril,

despida e vazia de ingratidão.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

FIM DA TARDE [SERRALVES]



Procuramos esse lugar bucólico,
o arvoredo ali plantado cruza-se
com um emaranhado de betão
que compõe e distingue a cidade.

A civilização teima em fazer-se notar,
vários aviões sobrevoam o azul
como facas que cortam o cenário
demasiado exposto na urbe.

O fim da tarde aproxima-se, trazendo
com ela o aperto que se transporta
intrínseco, entre artérias e equações
multiplicadas em rostos distantes

de sentido único. Daquele verde rústico,
sobrevivem apenas os espontâneos
murmúrios, como os aplausos soltos
plas ramagens, que dançam ao som

de um vento;

que nos sopra e embala o caminho.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

SALA INQUIETA



A sala inundou-se em remotos olhares
provenientes de diferentes paragens.
Parecem contar-nos angústias e medos
escondidos em vidas perdidas,

caminhos trilhados em solas gastas,
na erosão de um tempo que não perdoa.
Na sala, encaro essas tristezas gratuitas,
sente-se uma espécie de ar agitado

numa revolta que se detém,
sem respirar.

domingo, 20 de setembro de 2009

FIM DE ESTAÇÃO



Deitei os meus lábios nos teus,
como as folhas de Outono
se deitam incertas, nessa queda
eminente, ao sabor do vento.

Fazia-me falta aquela música,
que controlava e preenchia
certos espaços vazios e inventados,
entre as costelas de um peito

armadilhado. Guardo de ti
uma imagem ténue, radiográfica,
como se fosse a derradeira nota
assente, num epílogo anunciado.

Daquele verão que morria devagar,
nada mais sobreviveu. Volveu a chuva
e com ela a vontade enxuta em disfarçar
os restos de um destino verde,

------que não me pertencera.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

CHAVE DA MONOTONIA


« - É urgente calar as armas da discórdia,
parar e pensar:
há feridas que alastram
o mau uso das palavras.»

Naquela tarde, tudo fingia estar no seu lugar,
os livros amontoados na estante,
a roupa atulhada obstruindo a visão,
o aspirador que rosna em cada divisão,

o telefone que toca e não cala.
Os números encalham,
a vida segue impávida e implacável
(parece dizer à socapa que este dia

não se repetirá). Como sempre,
tudo se atrasa porém. Nos arrumos,
riem-se caixas de papelão poeirentas
envoltas em teias de aranha frágeis.

Um copo de gelo quebra a monotonia,
entra em cena o malte que defuma
a respiração e o travo ácido da jornada,
entre um e outro cigarro, repetem-se

as prudências injectadas na pele,
quebram-se agora noite a dentro
os fios que sustêm a promiscuidade
indecifrável, de um bilhete de 2ª classe.

Tinhas razão, há gritos no nada:
este dia não acaba?

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

EM RUMO



Aprendi a destilar-te
sou o alambique
da tua existência,
separo impurezas de ti,
vejo por grosso mais além.

Saí desse sono estranho,
olho este sol de frente.
Para trás ficou a sombra
daquele que eu não era.
(Será tarde para engrenar

o sentido?)

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

CHÁ DE OUTONO



Julgavas saber, mas talvez não saibas
de que é feito um Outono de chuva.
Os telhados luzem como cristais vivos
cegando depois as palavras ocas.
O medo dorme só,
no quarto dos fundos

ao lado da solidão.
A tua vara sem condão
esgaça a palavra amor.
Na mesa de esplanada
riem-se caras sem dentes.
Não há nada mais deprimente

que a tristeza do teu poema.
És fria, doce e cruel.
O fantasma que me sussurra é branco,
dança numa luz que penetra
os telhados de cristal,
numa tarde de Outono sem chuva.

São estas lágrimas secas
que fulminam afinal
as rugas de um rosto
cansado da sua disputa,
talvez cobarde mas sempre única.
E, no sal ressequido dessas lágrimas,

peixes de olhos grandes
hão-de vir ao mundo que os há-de comer.
A cada verso, nascerá mais discórdia,
o vento frio abalará as folhas mortas da Tília,
jazidas num chá que vive, orgulhoso e bem vestido
de mão dada com a sua arrogância.

Talvez não saibas mesmo afinal, de que é feito um Outono,
vestido pelos farrapos desse armário que chora.

sábado, 12 de setembro de 2009

CAMA DE FOGO



Leio-te nos lábios
fragmentos desse puzzle,
que afigura o tecido
com que cobres o corpo,
urdido nas noites
preenchidas pelo nada.

Estávamos deitados
no exacto momento
que desataste as palavras
dessa meia verdade,
que dizes ter sido
disputada a dois.

Desse teu postal rasgado
apenas sobra a tua metade,
reprimida,
no canto mais esquecido
da tua própria casa.
Brindo a esse sorriso

solto, eclode em nós
um desejo que penetra
a posse da própria carne.
Depois, tocaram-se os corpos,
crivados num lume que inflamou,
a imensidão dessa cama

emergida, na escuridão.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

SEM MÁCULA



Uma lua imperfeita, cai na perfeição
de uma neblina nocturna. Há arrumações
deprimentes, aquelas que nos fazem
desgostar da simples atitude nascida de uma
qualquer predisposição compulsiva em alguém
que não se sabe deter, passar despercebida

ou simplesmente dormir o seu sono (dos justos?).
Fartam certas banalidades, pela trivialidade
marcante, como um:
«ter que dizer, porque sim!»
(Será que vou acertar desta vez?)
Não existem portas que se fecham no acaso,

pela oposição natural que oferecem
à lei (tão lógica e simples) da causalidade.
Acredito na rotina de quem se ergue
à hora em que busco meu sossego,
que rapa com unhas sangrentas um destino
tão enfadonho, como o seu próprio rosto.

Desiguais serão sempre as viagens
e os bilhetes de ida, como a estreiteza ensaiada
desse caminho sem volta, nem hora comum.
(O violino tocará sempre em cordas
friccionadas e o tambor, será sempre «tosco».
Será pelo facto de usar a pele do animal?)

terça-feira, 8 de setembro de 2009

CEIFA



Abriu-se a porta que esperava.
Sinto uma enorme vontade
que me avança e trespassa
obliquamente

desde o trapézio à ilusão;
como aquela brisa morna
que beija um cereal maduro
quedado pela ceifa.

Cresce comigo a previsão
com que adivinho
outros próximos passos,
desejo abraçar-te de apetite,

prender-te aos meus sentidos.
E, na volta dessa ceifa, hei-de
cantar-te junto às papoilas
novidades próximas de mim.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

SILHUETA



A casa plantada a monte vestia
a humildade da nossa presença despida.
Erguia-se uma espécie de condição
verde entre a minúcia escolha de palavras.

O quadro que nos envolvia figurava
como um mar de palha que se nos atravessava
na secura da garganta. Podíamos sentir
os silêncios do amor, o apelo da mão
estendida sobre a face de um desejo
inventado por despudor. O copo de vinho
tinto alentejano que bebíamos precedia
a consciência dum todo resto seguinte.

Adorava ver a tua sombra nua, projectada contra
o vício dos armários, sobre as cortinas brancas
janela acesa, frenesim da manhã. Encerrava-se
em ti a luz do dia que avançava, e como eu, crescia

________________________________________[pra ti.

sábado, 5 de setembro de 2009

PRETO NO BRANCO



Pelos teus olhos, vou perpetrando a minha expiação,
nessa tua imagem que sobrevive na sépia dourada.
Nos teus olhos, vejo a magia da tua simplicidade,
confundo-me nessa tua teia que me circunda quente
e calculada, como a raiz quadrada da nossa existência.

Consigo tocar a felicidade traduzida pela tua pose,
visualizo a luz captada no silêncio da tua fotografia,
traço a simetria perfeita proposta pela tua expressão,
mordo teus lábios perpetuados em locuções vadias
de um odor que me prende, num momento não equacionado.

Sabes implicitamente que temos crescido e viajado assim,
ao sabor espontâneo dos vocábulos que se geram,
sob a geometria hermética dos nossos poros.
A tua força sente-se, como uma espécie de névoa atordoante,
anuncia-se nesse molde que me cativa a existência.

Quero agora imortalizar-te neste poema,
enunciar-te aos olhos de todos os que me lêem.
Assumir o teu corpo nu, que contempla o meu,
num espelho despido e despudorado, que me observa
apenas pelo desejo incandescente

(desse rastilho sem pólvora)


-----------------------------------------------oclusivo, nosso.


mpc - Copyright ©

terça-feira, 1 de setembro de 2009

« CAFÉ SOLO »



As horas vão engolindo os minutos adormecidos
pelo avanço da noite. O corpo pousado sob a cama,
não serena, passam em catadupa milhares de imagens
que se sucedem num mega turbilhão incontornável,
uma espécie de tornado que tudo assola sem lástima.

Tu, não estiveste presente mais uma vez
na mais importante de todas as apresentações,
e não é de todo estranho, porque dizes ser:
«dura e tensa» a tua ocupação.
Será que acreditas que o mundo te vê assim?

Não acredito na tua ansiedade, por isso a mordo
dentes bem cerrados, como quem morde
os restos de uma carne que lhe toca, sem condimento.
Perdoam-te afinal, o teu atraso habitual, sabes de antemão
que te restam ainda alguns segundos mais

para beber um segafredo quase em segredo
& como te sabe bem essa perversão hiperbólica.
Tudo gira sem sobressaltos na tua ausência,
mas tu, julgas ser uma peça essencial
de um qualquer engenho humano, compadecido


_________________________ [afinal, pela tua ausência.