AGOSTO 2010

cafésolo

domingo, 31 de outubro de 2010

«closing the shutter while it rains»















Vamos, uma caneta, um papel
e o vazio de uma lista inacabada
é tudo quanto te resta hoje
o calibre ou o movimento preso
na máquina [arrítmica] que trava.  

Não me contem mais desses vazios
lugares, desses mesmos passos
tão perdidos quanto os meus.
Sentei-me ao lado do fumo humano
como quem espera a quem não vem.


E era já tão tarde entre nós – entregues
à sorte e à sede mortal dos balcões
(líquidos de Outono) o mesmo rumo
ou avanço, a mesma direcção certa
rumo à incerteza. Na janela: a chuva


& a insónia capital a obtura mais fria
da manhã.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

há dias assim














Há dias assim, pouco ou nada podemos
fazer. Procuras pelas notícias nos restos
dos versos que sabes, não vais escrever.
Demasiada gente curvada aos céus, derrubadas
entre as agruras de uma vida? Quem sabe
quem somos ou para onde vamos?
Depois ajuizamos, bebemos do copo
a nossa insatisfação, fechamo-nos como
a outra gente sem rumo nem destino.
Não chove nem muda o cenário que voltas a ver
como a hipoteca da casa que não tens.
Se eu pudesse ser quem tu queres afinal, voltaria
para me repetir e ser eu mesmo, o mesmo que volta
para escrever à hora do jantar ou depois deste.
Não saberia mais respirar de outra forma ou,
tampouco tentei. Ligado às máquinas resisto,
mas insisto:
pouco ou nada há a fazer nesta casa, na cidade,
na marcação serrada que atalhamos nas imagens
dos versos dos outros. O gato que te pede por fim
a atenção que sabes, não vais dar a ti próprio.
E sabes tão bem disso, quanto é verdade na verdade
escreveres preciso o momento. E o não poema escrito
"neo-real", finge viver em ti, em nós, atados devagar,
no inexistir do agora, até que a morte nos separe.

Quem nos pode acudir de um dia assim afinal?

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

vago
















Quase não dormes em ti.
O teu modo era uma sala
candeeiros meia-luz
a certeza no meio do nada

vago desconforto ao amanhecer.
Mas era vaga também a sala,
os tecidos cor carne, um veludo
fixo aos olhos. E havia uma luz 

de silêncio para longe e para sempre, 
a palidez rara no resto dias. Um respirar 
junto ao fundo, coração lento das palavras. 
E um fumo brutal travado lamento. 

Os olhos perdidos no rasto das sombras 
e o teu recomeço a cada momento.
A cortina fechada rasgada no rosto
encerra-se lenta a outra face de nós.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

frio

 


Oh não te vou mentir! O ar frio
trespassava-me os dedos rasgados,
orifícios na carne que não sentia.
A janela aberta e eu descalço
a olhar o vazio, o precipício na janela
dos outros. Este lugar não me pertence
tampouco o buraco que me separa
da fronte do resto.   

Oh! Como sinto falta dos nossos
recados escritos. Tínhamos dificuldade
em comunicar, lembras-te?
Uma herança que recebeste, dizem-me,
não sei bem. Sinto a falta desse frio
- longínquo tempo - o teu olhar terno
mas distante como o limite onde
esbarramos sem querer.

A nossa casa tinha um quintal
com flores e uma rara combinação
para amar. Em que nos transformamos?
Quem é este nós afinal? Consigo odiar-te
enquanto te amo, consigo embalar
o desengano de um sono que tarda,
segurar as mãos contra o rosto,
verter-me dentro do vazio em que fomos.

Não te vou mentir,
quero sair do poema agora,
não sou mais eu quem te fala,
sou a voz crua da distância
que nos desprendeu.
Sou um beijo de morte
que me afaga manhã cedo
o rosto mais triste e frio
da tua insónia.

sábado, 16 de outubro de 2010

haverá um regresso?















                                                    Para o Cláudio Trovisco & o Luca Cavallo


Há certezas que vamos colhendo
como a pequenos grãos de arroz,
no estilhaço do chão dos outros.
Uma espécie de inépcia que tudo

varre num mesmo sentido. «St James 
Park» traz-nos de volta, centra-nos 
ao mundo que nos aceita  "so quiet 
and gentle"  sem compromissos ou 

regressos. A certeza que nos encastra 
aos melhores discos de sempre e para 
sempre, perduram, sobre o pó dos dias. 
A passagem fugaz por «Bacon Street»

e a condição de sermos talvez os últimos
transeuntes perdidos entre a dispersão.
As palavras que não servem à incerteza
são as sombras que despes ao caminho:

Haverá um regresso?

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

a nossa vez

 


Reflecte-se futuro no meu copo;
no astro que se afasta e traz gelo
aos restos que restam no vidro.

E há uma voz seca – árida até –
que sempre me encontra só,
sentado à mesma mesa de sempre. 

Resquícios de vida repetidos, nós
de silêncio. E é noite no deserto que 
atravessamos. No balcão de serviço

sobra o teu pedido, a nossa vez?
Um rasto que nos rastra por dentro,
a sede que nos rasga o coração.

domingo, 10 de outubro de 2010

10-10-10


                                            Para o José Carlos Soares


Entrei no progresso, situo-me automático junto
ao balcão que asseguro: impecavelmente limpo.
Há uma imagem daquela Paris «Retrô mode»
dos anos 30, projectada na viga mais fresca

da memória. Falamos poesia – a tarde inteira ­–
e fomos poetria acima, os versos e os livros,
e um modo tão diferente mas igual de dizer:
solidão circunstancial das mãos.

A rapidez de uma tarde indiferente ao desas-
sossego, a harmonia metafísica troca de nomes.
E um «rewind» que nos conecta de imediato:
o próximo café será certamente o “de saco”.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

ela















ela
parece
ser:
“a mulher".
quero
«cheká-la»;
tê-la
por perto,
na linha
em riste
a folha
branca;
no cume
em lume,
a língua
em fogo;
 

& a navalha
fechada
no fio
da vida:
a sonhar.

(almost a [green] poem here)

domingo, 3 de outubro de 2010

«the rain in you»
















O caos cinza
aos olhos da cidade,
o medo visível

no desfoque baço  -
verde das folhas
semimortas.

a urgência de te chegar
e o silêncio todo
do mundo:

matam-me agora,
devagar.