AGOSTO 2010

cafésolo

domingo, 28 de novembro de 2010

recurso




















Venho por este meio recorrer
ao âmbito natural das coisas.
Ao sentimento frio que nos recomeça
nocturno, desde o vazio da noite – nas ruas.
Um ou outro sorriso que gastamos
junto ao balcão de um bar
ou noutro cenário qualquer.

E nunca é tarde demais 
para distrair o medo, 
uma mesma direcção, 
uma mesma partilha 
a que chamamos: 
ânsia ou modo vida.

É urgente ditarmos as regras 
ao desalinho, é urgente cobrar 
às palavras uma ordem natural 
das coisas. Aceita-las como se fossem
só nossas, como se fossem a nódoa ou borrão 
de tinta no nosso papel, um recurso 
que recorre desta breve passagem.

Venho pois por este meio recorrer
   – nesta folha azul de 25 linhas – 
à jurisprudência que em boa verdade 
não existe. Ao reconhecimento 
que não procuro, diria mesmo que: 
procuro o consentimento que existe
entre o lume cruzado dos teus olhos.

Recorro pois deste limite cortante
que nos [de]fere a cada momento.
Ao esquecimento que se apaga junto
ao vazio de um copo, ao abandono
lento que nos sobra – neste recurso
perpetrado – junto à lisura do balcão.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

«sixtieth day»















Sessenta dias e sessenta noites.
Estômago à boca
madrugada dispersa
sede entregue às noites 
perdidas por quase nada,
dispersão dispersa e: nós.

Nada é como nos disseram ser o remorso 
de não ser uma conjugação plural.
Às vezes lento outras vezes rápido demais,
e o que é ser lento ou frágil no poema?

A fatalidade de um tempo redimido
às circunstancias de não ser?
As palavras que voam e não se inscrevem
na certeza da nossa incerteza?
Um cigarro que voa sem tempo 
de entornar cinza nas palavras?

No início éramos nada, não existíamos 
no espaço ou tempo plural, estávamos 
entregues – por assim dizer ­– 
ao cronógrafo seguro dos dias. 
Repito: iniciava-se – manhã cedo ­–
estômago rápido, ­ sobrando o resto 
à boca, uma espécie de forma ­– arrastada
                                                     [ao momento.
A carne desentendida aos pedaços.

Remato?
O que fica por dizer,
escrever, repartir? 
Recomeçamos o poema
a partir daqui?

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

«rocket - 7»


















Mudança de verbo
mudança de ritmo
mudança estilística
arrumação factual.

Assistir-te sem rodeios
admirar-te à distância
ocupar-me da existência simples
uma espera de outono.

As cores frias de inverno
as tonalidades quentes da tua boca
o vermelho que te sobra
«jukebox» aleatória tão certeira.

Levo-te comigo
onde quer que inexista
sem promessa de rumo
ou sequer regresso 

o verbo que foi.

sábado, 20 de novembro de 2010

desde o sofá
















São estes os dias do costume.
O papel de parede numa casa marcada 
por avanços e recuos, um certo 
desacerto ao nosso (des)encontro. 
São estes dias de chuva quem mais 
nos une. Quem mais nos revela 
incisivos  maduros & centrados 
às nossas focagens.

Olhamos de frente para as fotografias  
precipitamo-nos menos nos nossos 
planos, mas vemos sobretudo um 
ou outro desencanto – o cinza  
fulgente de cada dia – o fio 
cortante trespassado pelo tempo;
E voltamos ao limite metafísico 
do risco [o mesmo esquecimento?] 
    
           por onde
                        insistimos
                                         [voltar]
                                                    arder.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

«travelling light»













Foto: Samuel Fidalgo


Gosto, do preciso momento
ou nem tanto, dessa espécie
de partida para o desconhecido,
a servidão ao defeito, o corpo
mergulhado no vício, uma espécie
de embriaguez aos actos.
Às vezes fica tarde.

Ninguém entra no comboio
sem que deseje a viagem,
desconhecendo o destino
o esplendor verde da partida.
Fica tarde não o perceber.
É demasiado tarde para insistir
em pormenores menores,

desacertos incertos, coisas de partir.
Leva-se na bagagem a companhia certa
todo o resto: simplesmente acontece!
(Como terá acontecer, dir-se-à.)
Às vezes fica tarde para desmontar
o destempo daquilo que se não vê.
Mas gosto! Sobretudo dessa ida

ao encontro dessa certeza
de seres tu meu (re)partir,
ou antes: meu partilhar.

domingo, 14 de novembro de 2010

à varanda

















Um amor sensível.
Assim te plantaste à varanda
do meu coração.
Nunca te persegui, mas vieste assim:
tão nítida ao sobressalto dos olhos.
Sei bem que ainda não consegui explicar
aquele «flash» que me parou no tempo.
Estávamos num fim de verão, digo,
num princípio quente de outono,
onde crescíamos em contra-ciclo.
Impossível esquecer a evidência verde
no relance fugaz dos teus olhos.
Todo o resto latente pouco importa agora.
Mas respondo em concreto à pergunta
daquele sábado à tarde:
escrevo a raiz de um equilíbrio
que agora me alcança
à varanda.   

sábado, 13 de novembro de 2010

esta noite














Só a noite sabe deste nosso regresso 
a um mesmo desencontro; ao lado inverso 
dessas portas trancadas pelo aço –  
a metalurgia cortante – na penumbra 

do resto dos dias. Mantemos na pose 
no corpo erecto, a rectidão por onde 
respiram cabeças ­ blindadas – aos códigos 
esparsos dos outros. Há algo de errado 

nesta tarde, nesta relação de ausências, 
talvez por saber que apenas a noite 
nos reconhece sem filtros – e sabe 
que sempre volvemos para envolver 

no cimento as paredes dos nossos versos.
O olhar perdido na ausência do rosto
a sépia dispersa cimentada pela noite
são o resto das estrofes do nosso vazio.

E em jeito de remate, dir-se-ia :
fazes-me falta esta noite!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

avanço
















Dentro do carro vejo o avanço da cidade
num tom que retumba ao vazio.
Há uma quietude humana e triste apenas
irrompida pelos versos. Arrumadores de rua
esperam-me e aproveitam a minha deixa
para disfarçar entre legendas desse quase
nada que adivinho. E não há poesia que resista
ao vício, a este avanço tão objectivo para a morte.

Escrevo, não tanto o que desejo, mas antes
as costas do envelope perdido no porta luvas.
Sejamos claros: estes dramas não se lamentam
e em boa verdade não há razões em Kant
que expliquem conjunturas. Há mo(vi)mentos   
 – ainda que matematicamente ideados
destes psico-dramas-esquivos; e é ainda tão 
cedo para este avanço tão objectivo, penso.


É chegada a hora do nosso desencontro.
Saio e finjo na moeda não registar o momento.
É tão mais fácil fingir quando se não lamenta
esta crua expressão que se insiste re(vi)ver.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

«no sense»















Tarda o sono como a vida
nos retarda o coração
batimentos irregulares
dessas músicas repetidas
diante do nosso tempo.

Tarda o sonho e a memória
entorpece a decisão
fundamentos infundados
dessas palavras perdidas
e a sombra do que não fomos.

Tarda o dia como o astro
nos deturpa a direcção
pretéritos de um não-futuro
dessas ruas sem sentido
e o mesmo desassossego:

- de não termos um destino?

sábado, 6 de novembro de 2010

M.O. [1943]















"E quase gostas disso, quase: a música de punhais,
servil, um certo e procurado desencontro.(...)

O resto, a vida, fica para outra vez."
                                       Manuel de Freitas 

É-me tão difícil falar desse tempo Mário:
uma casa longínqua na aldeia materna
desfocada nos braços da nossa infância.

A eterna lembrança do aniversário que foi
uma espécie de desastre de emoção rara.
O peso da revolta entornada ao soalho,

a mesa quem tomba sobre as palavras loucas,
um fim de mundo vazio entregue aos ossos,
como a ferida que corre no fervor do sangue.

O equilíbrio perdido dessa pressa distante
e o quintal tão quieto às traseiras da noite
são a cepa estéril de um medo insuspeito

a fissura que seiva ao nosso desencontro.
E a mobília que resta nos restos da casa
é o baço mais baço no pó da memória.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

caiu a noite
















"Caiu a noite. E sopra um vento fino.
E não é já assombro 
assombro tal?"
                                               Ana Luísa Amaral 


Caiu a noite e “Próspero morreu” é tudo
quanto sabemos ao avistarmo-nos.
À sua morte há uma ordem que se finda
mas falta saber como – enquanto cigarros
se esfumam apressados – à porta e à hora
marcadas. Uma sala – decorada a livros –
é o nosso cenário. Na Ilha, Ariel anuncia
a desgraça como se fosse: o nosso último cicerone.
O abismo e a tempestade, o labirinto e Teseu,  
Ariadne e a pretidão de amor de Bárbara
[contada a preceito pela escravidão de Luiz].
Mas há outras vozes reais de outra gente real
que nos faz perder no tempo. Seguro a pauta
e perco o pé – duas vezes – sem o sangue
que ainda bate no coração frio de Caliban.
Transmites-me paz. Sabias?
Mas Próspero morreu e é tudo quanto sabemos,
e há outros amores e desventuras por contar
[o acto da peça que mais desconhecemos].
E há uma nova ordem {afinal} que parece advir dali,
sem perder mais o pé ou o equilíbrio:
Ariel regressa-nos, encerrando no pano
aquela voz: tão feminina e tão presente,
tão suave e tão.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

inconcreto

















Conta-nos agora desse teu sonho
de esquecimento, dessa manhã
parada junto aos canteiros de rosas.
A garrafa a boiar na mensagem.

O dia recomeça-se lento junto
ao fundo da incerteza que anoitece.
Acordar esmagado pela sombra
absoluta de um amor absoluto

ou a falta dele. A promessa frágil
de um verso sem voz nem futuro.
Acordar vazio num coração preso,
colado à transformação dos versos.

Conta-nos da tua mais profunda
lembrança, o teu maior segredo
informulado. Olha-nos sensível
junto à insensibilidade das mãos.

Olha-nos de frente para o resto
dos versos, conta-nos a verdade
que não dizes clara. Fala-nos de ti
dessa sensibilidade que escondes

a todo o custo. Será que receias
recair junto às desgraças do amor?
Esse amor terrivelmente devastador
um todo medo sensível que adormece.

E tornas a cair junto aos lençóis
dum não-futuro, à boca fria da noite.
Eu quero gritar sem que me ouças,
eu quero escrever sem que o sintas.

Não sei que caminho é este, desconheço
os dias que crescem para lá da maturidade.
Trago à luz da noite imagens de memória:
um travo doce junto à inconcreta reformulação

do que não somos: o travo sal da oposta
visão ao outro tanto que não temos.
Conta-nos agora porque anoiteces assim:
junto à madrugada dos teus sentidos.